Interpretar nos Tribunais Portugueses: Contexto Atual e Desafios

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30/12/2024

Interpretar nos Tribunais Portugueses: Contexto Atual e Desafios

Nos tribunais portugueses, o papel do intérprete é indispensável para garantir um processo equitativo e inclusivo, especialmente porque envolve estrangeiros que não compreendem língua oficial do processo, no nosso caso, o português. Contudo, há desafios significativos que dificultam a eficácia do trabalho do intérprete e comprometem os direitos das partes envolvidas.


Enquadramento Legislativo

A legislação portuguesa, através do artigo 92.º do Código de Processo Penal (CPP), estabelece que a língua utilizada nos atos processuais deve ser o português. Contudo, quando uma das partes não compreende a língua, o tribunal deve nomear um intérprete qualificado, sem custos para o indivíduo envolvido. Este direito está alinhado com a Diretiva Europeia 2010/64/EU, que define padrões mínimos para garantir interpretação e tradução em processos penais.

Apesar do enquadramento legal, Portugal não possui regulamentação específica que defina critérios claros para formação, qualificação ou certificação de intérpretes em tribunal. Isso resulta na ausência de controlo sobre a qualidade, por um lado, e, por outro, na dependência da nomeação de intérpretes ad-hoc ou não qualificados.


Contextos da Interpretação de tribunal

A interpretação em contexto forense vai além das salas de audiências, sendo necessária em diversos cenários, tais como:

  • Órgãos de Polícia Criminal:
    • Durante interrogatórios, detenções ou na tomada de declarações por entidades como Polícia Judiciária (PJ), Guarda Nacional Republicana (GNR) e Polícia de Segurança Pública (PSP).
  • Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA):
    • Em situações de legalização de cidadãos estrangeiros ou casos de tráfico de seres humanos.
  • Estabelecimentos Prisionais:
    • Facilitando a comunicação entre reclusos estrangeiros e as autoridades prisionais e/ou seus defensores.
  • Escritórios de Advogados:
    • Mediando conversações entre defensores e arguidos que não compreendem a língua portuguesa.

Tais cenários exigem competências específicas, adaptadas às necessidades e dinâmicas de cada ambiente. A ausência de regulamentação e formação especializada pode comprometer a eficiência e a justiça nesses contextos.


Remuneração Prevista no Regulamento das Custas Processuais

O Regulamento das Custas Processuais (RCP), através da Tabela IV, estabelece valores fixos para a remuneração de tradutores e intérpretes:

  • Tradutores: Recebem €0,027 por palavra traduzida. Este valor é significativamente inferior à média europeia, que varia entre €0,07 e €0,20 por palavra, dependendo do país.
  • Intérpretes: São remunerados por serviço, com valores que variam entre €102,00 e €204,00, dependendo da duração e complexidade da tarefa.

Esses valores estão entre os mais baixos da Europa, desincentivando a entrada de profissionais qualificados no mercado e contribuindo para a nomeação de indivíduos sem formação específica.


Tipos de Interpretação em Contexto Forense

Em contexto judicial, diferentes tipos de interpretação são exigidos, cada um com desafios e competências específicos:

  1. Interpretação Simultânea:
    • Utilizada principalmente em audiências com vários interlocutores. Exige que o intérprete ouça e traduza simultaneamente, muitas vezes utilizando a técnica da chuchotage (interpretação sussurrada).
  2. Interpretação Consecutiva:
    • Comum em interrogatórios e depoimentos. O intérprete toma notas enquanto ouve e, em seguida, traduz para a outra língua. A memória de curto prazo e as técnicas de anotação são cruciais.
  3. Interpretação à Vista:
    • Consiste em traduzir oralmente um documento escrito, muitas vezes de forma improvisada. Requer rapidez de raciocínio e profundo conhecimento de terminologia técnica.

Cada modalidade exige competências distintas, sendo imprescindível uma formação especializada para garantir a qualidade da tradução salvaguardando o conteúdo original.


Quem Nomeia os Intérpretes?

A nomeação de intérpretes é responsabilidade da autoridade judicial ou policial, como determinado pelo artigo 92.º do CPP. Contudo, muitas vezes, esta tarefa recai sobre as secretarias dos tribunais, que improvisam na seleção com base na disponibilidade local, sem critérios atinentes à real qualificação.


Ausência de Base de Dados Nacional

Embora a Diretiva Europeia 2010/64/EU recomende a criação de um registo oficial de intérpretes qualificados, Portugal ainda carece dessa estrutura. Outros países, como Reino Unido e Espanha, já possuem modelos que incluem a criação de registos nacionais para facilitar a consulta e a contratação de intérpretes habilitados.


Impactos e Consequências

A ausência de critérios regulamentares e formação apropriada afeta:

  • Direitos das Partes Envolvidas: Interpretações inadequadas podem levar a má compreensão de acusações ou defesas, prejudicando a regular tramitação do processo.
  • Equidade no Processo Judicial: Decisões baseadas em interpretações erróneas comprometem a realização da justiça.
  • Credibilidade Institucional: Casos como o uso de ferramentas desadequadas, como o Google Tradutor acarretam falhas graves com consequências muitas vezes irreversíveis.

Propostas de Melhoria

  1. Estabelecimento de Registo Nacional:
    • Criação de uma base de dados que reúna profissionais certificados, facilitando a consistência do processo de nomeação.
  2. Formação Obrigatória:
    • Implementar cursos de formação regulares para intérpretes, para magistrados e advogados, designadamente sobre regras de interação comunicacional em audiências mediadas por intérprete.
  3. Políticas de Remuneração Justa:
    • Rever as tabelas de honorários para atrair profissionais qualificados e valorizar o serviço.
  4. Adoção de Normas de Qualidade:
    • Implementar e exigir o cumprimento das normas internacionais, como:
      • ISO 17100: Direcionada à gestão da qualidade em serviços de tradução, estabelecendo critérios para processos, recursos e outros requisitos.
      • ISO 20228:2019: Focada em serviços de interpretação jurídica, esta norma define padrões específicos para interpretação forense, garantindo precisão, imparcialidade e competência técnica por parte dos intérpretes.

Estas normas asseguram uma base sólida para a padronização e elevação da qualidade dos serviços de interpretação e tradução no contexto judicial.


Conclusão A interpretação nos tribunais portugueses exige atenção urgente para que o sistema judicial se adapte à crescente diversidade cultural e linguística. Regulamentações robustas, formação adequada e a adoção de normas como as ISO 17100 e ISO 20228:2019 são passos essenciais para garantir que os direitos linguísticos sejam plenamente respeitados, promovendo uma justiça verdadeiramente acessível e igualitária.

Biografia:

Elsa Rodrigues. Advogada, tradutora jurídica (EN/FR/ES>PT) e intérprete de tribunal (EN>PT>EN). Iniciou o seu percurso profissional como jurista do Governo de Macau (2001/2009). Mestre em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra frequenta atualmente, nesta mesma casa,  o programa de Doutoramento em Línguas Modernas: Culturas, Literaturas, Tradução. Associada afiliada do ITI (Institute of Translation and Interpreting, UK), Formadora certificada pelo IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional, PT), integra, desde 2019, os órgãos sociais da APTRAD (Associação de Profissionais de Tradução e de Interpretação, PT)