Para além do entretenimento: novos mercados para o legendador

1ª Conferência Internacional de Audiovisual da APTRAD [https://aptrad.pt/1stAVTIntConf/]
16/01/2020
Prémio APTRAD 3ª Edição
20/02/2020

Para além do entretenimento: novos mercados para o legendador

É inevitável que quando se pensa em tradução audiovisual – e aqui vou focar na tradução para legendagem –, a primeira coisa que venha à mente seja entretenimento, que é de suma importância na vida de todos nós. Não se pode tirar o mérito da presença cotidiana que a arte e o entretenimento têm na vida das pessoas e no mercado da tradução audiovisual. E digo isso logo no início para deixar claro que este texto não tem a pretensão de desmerecer nenhum nicho de mercado da tradução audiovisual. Muito pelo contrário, quero expor aqui uma situação da qual pouco ou nada tem-se falado e que urge na indústria da tradução audiovisual: a tradução para legendagem para além do entretenimento.

No exato momento em que escrevo este artigo no Porto, Portugal, há uma forte campanha dos colegas legendadores, notadamente da AVTE (Audiovisual Translators Europe) e da Subtle (the Subtitlers’ Associaton – Reino Unido) para a valorização do trabalho do legendador por parte dos produtores de cinema. Uma inciativa tão louvável que foi parar no The Guardian: (https://www.theguardian.com/film/2019/apr/25/say-what-why-film-translators-are-in-a-war-of-words-over-subtitles?fbclid=IwAR1qLUwoQff7GjI7YQ-OauV0tGzIsmo-XdUakb7xAxEBtTZy5Rn8Lihs_5U). O colega português Nuno Oliveira também foi merecidamente publicado no site Público.PT (https://www.publico.pt/2019/04/23/p3/cronica/preciso-dar-lingua-1868511?fbclid=IwAR2w4Lh3AIsmxR8v1PjXdMsyn4ZF7i6L3Ful7oQUVyUB0CS8WhbzDm5auDI). Mas a minha sensação é de que esse clamor é reducionista.

Em um momento em que nunca se produziu tanto material audiovisual, como não nos dar conta de que o mercado de tradução audiovisual foi imensamente alargado e, agora, comporta inúmeros outros tipos de material audiovisual com demanda para tradução? A tradução para legendagem não se reduz a legendar entretenimento, porque o mercado de produção audiovisual vai além da produção de conteúdo para esse fim. Sim, simples e óbvio assim. Mas não temos prestado atenção suficiente a essa lógica.

Se a maioria dos tradutores especializados em tradução para legendagem está trabalhando com entretenimento – e isso creio ser de conhecimento comum no meio tradutório –, quem está legendando o material que não vem pelas mãos dos produtores para cinema, TV a cabo ou streaming? Quem está legendando o material corporativo que uma empresa pede para o seu fornecedor habitual de tradução de textos? Como deve proceder a empresa de tradução que recebe uma demanda para legendar material para e-learning de programação para Android e IOS? Como deve ser o gerenciamento de um projeto de legendagem de um curso de especialização médica? Ou de um treinamento interno para uma multinacional com filial em quatro países? Ou de vídeos para redes sociais dos mais diversos tipos e assuntos? Aquele vídeo institucional de apresentação de resultados de uma multinacional australiana líder na indústria alimentícia, ou ainda quatro horas de vídeo instrutivo sobre como calibrar impressoras 3D?

Obviamente que, para muitas agências de tradução, acostumadas a trabalhar com tradução de textos e interpretação, o material audiovisual é, a princípio, um desafio. Mas é aqui, neste momento do processo, que reside a linha tênue entre o “se virar” e o “buscar informação adequada”. Boa parte dessas empresas não conhece o procedimento adequado de tradução para legendagem nem a legendagem em si. E, ao buscar informações, tudo parece muito simples, não? Afinal, já sabem lidar com projetos de tradução. Depois, é só transformar o texto em legenda e por no vídeo. Coisa que todo mundo hoje descobre como fazer com não mais de dois cliques no Google. Pronto. Tudo resolvido.

O gerenciamento de projeto nesse modelo é simples: transcrever o áudio + traduzir em Word ou Excel, depois transformar em legendas, revisar e pronto: tem-se o produto final para entregar ao cliente. Assim é feita boa parcela dos projetos de tradução para legendagem fora do mercado de entretenimento. E, dessa forma, esse nicho de mercado também não aparece para os tradutores legendadores, que estão apenas na cadeia do entretenimento e não costumam traduzir textos ou interpretar.

A empresa de tradução usa o profissional com o qual já trabalha para tradução de textos e revisões. Provavelmente, o gerente de projetos ou outro funcionário aprende a fazer a mágica da legenda acontecer com um software gratuito encontrado on-line e com um tutorial milagroso no YouTube e fica tudo resolvido. E isso, obviamente, sem abrir mão da qualidade da tradução, pois nisso não se peca.

Mas, quando falamos de legendar de forma mais refinada, como manda o figurino da tradução audiovisual, precisamos ter em conta que existem não só todas as questões técnicas e parâmetros tidos como boas práticas (não podemos falar em padrão internacional) – tudo isso já exposto com maestria pelos competentíssimos colegas supracitados nos seus artigos e, por isso, não cabe aqui repetir -, mas também lembrar que para além dessas questões habituais, temos agora um novo mercado fora do entretenimento, que traz nova demanda e requer novos conhecimentos. E, por isso, o processo de tradução para legendagem é muito diferente do supracitado, que tenho visto ser prática bem comum no mercado que tenta absorver como pode essa nova demanda.

Paro para refletir por uns minutos e me lembro de que eu mesma não conheço colegas que vivem exclusivamente de tradução para legendagem técnica, institucional e de e-learning como eu. Ao longo da minha carreira como freelancer e como empresária da tradução, pouco trabalhei com entretenimento. E isso acabou me trazendo perspectivas diferentes sobre o mercado de tradução audiovisual e muitos questionamentos.

Há muitos tradutores excelentes, especializados nas mais diversas áreas do conhecimento: medicina, química, engenharia etc., todos traduzindo textos e/ou interpretando. Os legendadores estão no mercado de entretenimento. Então temos, de um lado, os profissionais com conhecimento especializado sobre os assuntos e, de outro, os legendadores, mais generalistas, com domínio da técnica da legendagem. Mas não há no mercado profissionais especializados, com ambas as competências, ou profissionais legendadores que trabalhem com materiais diversos que não o entretenimento.

A indústria audiovisual do entretenimento tem um sistema de funcionamento que é top-down. Ou seja, a indústria de entretenimento sabe lidar com esse tipo de material e, por isso, pede tudo já “redondinho”, informa ao fornecedor os parâmetros com os quais deverá trabalhar, em que formato quer receber os arquivos etc. O que não acontece quando lidamos com agências de tradução habituadas a trabalhar com textos, CAT tools e memórias de tradução, mas que nem conhecem os softwares de legendagem disponíveis no mercado, e acontece menos ainda com os clientes diretos. Essa nova demanda vem de um mercado que desconhece as boas práticas e os parâmetros da tradução para legendagem.

A demanda para vídeos técnicos, corporativos e e-learning dá a chance de o especialista tradutor para legendagem tomar as rédeas da situação. Nesse caso, é o especialista que detém o know-how, além de ser a solução que o cliente procura e precisa. Com isso, também vem toda a responsabilidade de estar cada vez mais atualizado sobre as diferentes plataformas e formatos de vídeo, novas tecnologias,  entender um pouco da pré e pós-produção audiovisual, ser um ávido curioso informático e tecnológico e, além disso, estar disposto a se especializar em algum assunto mais técnico ou ainda se aventurar em pesquisas mais densas e frequentes, porque não há rotina e monotonia em projetos de tradução audiovisual. Esse nicho de mercado que já se descortinou não tem o glamour do entretenimento nem da série de TV. Mas é um mercado em que trabalhando bem, é possível ter retorno financeiro melhor. É uma lacuna em um mercado milionário, que não para de crescer exponencialmente.

Por dia, são vistos mais de 500 milhões de horas de vídeo no YouTube. Em 30 dias, são enviados mais vídeos para a internet do que em 30 anos de produção da TV dos EUA! Em 2019, os vídeos serão responsáveis por 80% do tráfego consumido pela internet.

Treinamentos em vídeo oferecem mais engajamento, visto que, ao assistir, se retém 95% da mensagem contra 10% ao ler a mesma mensagem. Se puderem escolher, 72% das pessoas preferirão vídeo a texto.

Do ponto de vista de empresária da tradução hoje, custo a crer que, diante de tudo isso, as agências de tradução não tenham percebido o quanto esse processo de gerenciamento dos projetos de tradução para legendagem sem usar legendadores especialistas é mais dispendioso, tanto em tempo quanto em recurso financeiro. Do ponto de vista de legendadora, me parece reducionista defender o mercado de tradução para legendagem como se ele fosse apenas entretenimento sem levar em conta as inúmeras possibilidades que batem à porta.

É tudo muito novo nessa demanda que o mundo cada vez mais rápido da tecnologia traz. E ainda não há padrão estabelecido, mas alguém vai desenhá-lo, certamente. Por que não nós? Se não ocuparmos o espaço de especialistas que nos cabe, alguém o fará por nós. Pela defesa do amplo mercado de tradução para legendagem, por um mercado melhor para todos mas, para isso, precisamos ser profissionais melhores para o mercado também.

Biografia:

Brasileira, licenciada em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Tradução para Legendagem de Cinema e Televisão pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) é, desde 2009, tradutora profissional no par linguístico inglês – português do Brasil, traduzindo documentos de multinacionais, conteúdos de websites, material jornalístico, para o terceiro setor e audiovisual institucional. Fez parte da equipa de tradutores da revista Linux Magazine no Brasil, foi organizadora da IV Conferência Brasileira de Tradutores do ProZ.com em 2012, assim como de outros cursos e eventos para tradutores profissionais. É especializada em legendagem e atua principalmente no ramo audiovisual corporativo e de e-learning. Com o passar dos anos, passou também a gestora de projetos de serviços linguísticos e hoje é diretora-gerente da Verve Language Service Provider, agência de tradução sediada no Porto, com representação no Brasil, cujo core business é a tradução para legendagem, oferecendo igualmente um amplo escopo de serviços que vão desde a tradução de textos à interpretação e também tradução para acessibilidade como SDH, Libras (linguagem brasileira de sinais) e audiodescrição. É formadora de legendagem no curso SET – subtitling excellence training e em workshops e consultora para implementação de serviços de tradução audiovisual em agências de tradução.